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por que as pessoas consomem mais cultura fora do brasil?

por que as pessoas consomem mais cultura fora do brasil?

meu querido namorado está deslumbrado com paris, apaixonado por tudo que envolve arte, ele descreve esse encontro como "nirvana artístico". durante os últimos dias tudo que venho escutando dele é sobre “a forma que o brasileiro consome cultura é muito diferente daqui”. vim em uma mera tentativa de explicar essas características. fã ou hater, o fato é que consumimos TUDO de maneira diferente. É lógico que eu quero entender o porquê.

a palavra cultura nasce na própria europa moderna, ligada ao projeto iluminista e à ideia de “civilização” versus “barbárie”. no século XVIII-XIX, filósofos e cientistas associavam esse conceito ao progresso racional, às belas-artes e à erudição. logo, “ter cultura” quis se aproximar do modelo europeu de civilização.

e isso criou uma visão estrutural: o continente que define o termo se coloca automaticamente como seu centro.

A expansão colonial europeia (séculos XVI-XIX) exportou não apenas produtos e armas, mas sistemas de valor . as potências coloniais impuseram a própria estética, idioma e visão de mundo, classificando os outros povos como “folclóricos”, “exóticos” ou “sem cultura”. isso instituiu uma posição simbólica: a Europa como produtora de cultura “universal” e o resto do mundo como produtor de “expressões locais”.

e mesmo após a descolonização, esse imaginário persistiu: os museus desse famoso continente guardam o acervo de todo o planeta, o turismo cultural é centrado ali, e o sistema de legitimidade artística (museus, academias, moda, arte contemporânea) continua europeu.

todo mundo sabe (ou deveria) que o brasil nasce sob colonização portuguesa, sem projeto de produção simbólica autônoma. durante séculos, o “bom gosto” e a referência artística vinham da europa. uma elite brasileira se formou olhando para fora. não é à toa que o centro do rio de janeiro se parece tanto com paris. tudo sempre foi cópia.

mesmo após a suposta independência, nossas instituições culturais imitaram principalmente os modelos franceses e italianos, e as elites importaram cultura em vez de produzi-la. isso cria até hoje um reflexo de subordinação estética e intelectual.

o resultado? enquanto exportamos uma das culturas mais ricas do planeta (permita-me dizer que de maneira muito estereotipada e problemática), internamente tendemos a subvalorizar nossas próprias formas de cultura. a percepção de que “aqui não se consome cultura” tem raízes nessa internalização da posição eurocêntrica e na forma que fomos colonizados.

isso a gente bem sabia… mas será que tudo se retomará a síndrome do vira-lata? será mesmo meu povo?

como essa herança histórica ainda se perpetua mesmo após séculos?

ao contrário da europa, que passou por revoluções (francesa, industrial, burguesa, comunista), o brasil não teve ruptura estrutural. uma elite colonial virou elite imperial, que virou elite republicana, que virou elite empresarial. mudou a roupa, manteve o carrasco.

  • não houve redistribuição de terra, nem de educação, nem de capital simbólico.

  • o estado foi capturado por uma classe que confunde o público com o privado.

  • as reformas foram sempre superficiais — o suficiente para conter revoltas, sem mudar o sistema.

em termos práticos: a desigualdade não é acidente, é projeto.

e eu te conto mais: o brasil herdou o patrimonialismo português (onde o poder é pessoal, não institucional). tanta coisa pra herdar, né? kkk isso significa que as relações políticas são de favor, não de função. tão familiar? o tal do jeitinho brasileiro? governar é “proteger amigos e punir inimigos”, não “administrar o público”. isso molda toda a cultura política: do vereador ao presidente.

Além disso, na Europa, existe uma ideia de nação construída com séculos de identidade e coesão cultural. no brasil, o “nós” nunca se formou. há uma elite branca que não se confirma como parte do povo, e um povo que não se confirma no poder. e sem identidade coletiva, não há projeto de futuro. apenas sobrevivência.

Essa richa entre pobres e ricos que eu vejo todo santo dia no tiktok é o que sustenta o nosso país da forma que ele é hoje, cruel, violento e desigual. embora não haja unidade e uma dose de patriotismo, não há visão de futuro. é necessário que o brasileiro se reconheça como igual.

em qualquer lugar do mundo, as elites precisam de algum nível de controle social. a diferença é como esse controle é exercido.

na europa, o poder aprendeu que uma população instruída, crítica e culturalmente sofisticada é produtiva, inovadora, sustenta o capitalismo e avançado legitima o estado de bem-estar. educar o povo é funcional: aumenta a produtividade, reduz a violência, cria coesão social e dá legitimidade às instituições.

em quase toda a américa latina, o projeto foi outro: educar a massa é arriscado, porque ameaça o status de quem está no topo. uma população ignorante é mais barata, mais dependente e mais fácil de manipular — via fé, medo, ou consumo. os 3 cavaleiros preferidos de Brasília.

por isso, uma elite política e econômica prefere manter o país semi-educado e distraído, com doses controladas de informação e MUITO entretenimento. a ignorância não é descoberta, é ferramenta de governo. taca-lhe carnaval e cachaça neles.

os políticos brasileiros não precisam de uma população culta para se manterem no poder. e essa é a chave da nossa questão.

eles dependem de:

  • assistencialismo clientelista: troca de favores por votos;

  • baixa fiscalização pública: pouca transparência e pouco controle social;

  • reprodução midiática: controle narrativo via grandes meios de comunicação;

  • alienação cultural: quanto menos o povo entende o funcionamento das instituições, mais acredita em mitos personalistas.

na europa, a base do poder político é a confiança institucional e o desempenho. o eleitorado é mais instruído, o voto é menos personalista, e a cobrança é mais racional.
aqui, o poder se sustenta na dependência e na desinformação.

mas e os estados unidos nisso tudo? o brasileiro não vive olhando para cima?

sociologicamente, os EUA substituíram o capital simbólico (erudição) por capital de mercado . a cultura passou a ser mensurada em alcance e impacto global, não em tradição. isso cria um paradoxo: os EUA dominam a cultura globalmente, mas são vistos como “sem cultura” porque sua produção não obedece à definição clássica europeia de arte/cultura — e sim à lógica industrial e midiática.

A forma que consumimos cultura hoje tem muito a ver com eles .

é útil começar a definir o que se configura como “consumo de cultura”, para situar o que se mede.

  • “consumo de cultura” pode incluir: assistir filmes, séries; ouvir música; ler livros; ir a teatros, óperas, museus; shows; dança; exposições; etc.

  • também inclui “participação cultural” (ir a um evento) e “frutição cultural” (apreciação ativa, leitura, etc.).

logo, define-se por consumo de cultura diferentes formas de interação e de "produto/serviço". Descobrimos que até a nossa querida novela brasileira se enquadra nisso, não somente as excursões aos museus na infância. mas o interessante é o que vemos quando damos um zoom em casa.

  • a pesquisa da fundação itaú cultural + datafolha indica que em 2023 96 % dos brasileiros entrevistados (16-65 anos) participaram de alguma atividade cultural (online ou presencial). em 2022 esse valor era 89%.

  • Apesar dos altos percentuais gerais de “alguma atividade cultural”, o que se consome é em muitos casos mídia digital ou em casa — e nem sempre “eventos culturais” tradicionais (teatro, ópera, museu) com frequência. por exemplo: em pesquisa nas capitais brasileiras, “museus” foram visitados por apenas ~27% dos entrevistados; teatro ~25%; concertos ~8%.

  • a desigualdade socioeconômica aparece como fator importante: renda mais baixa e menor escolaridade associadas estão a menor participação cultural.

na nossa nação, embora o consumo de mídia seja alto, o tipo de frequência presencial (eventos culturais formais) parece ter limites, como visto nas pesquisas acima. a impressão de “menos cultura” pode estar relacionada a uma menor interação com a arte fora das telas.

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  • bourdieu sugeriu a distinção entre “highbrow” (alta cultura) e “lowbrow” (cultura popular) como eixo de diferenciação cultural.

  • posteriormente, estudiosos como richard a. Peterson introduziuam uma noção de onívoro (omnivorismo cultural) — ou seja, pessoas que consomem tanto cultura “alta” quanto “popular”.

  • ainda: a teoria da cultura de consumo (consumer culture theory – CCT) que examina como o consumo (inclusive de cultura) tem significado social, simbólico e ligado à identidade.

Entendemos que talvez o padrão brasileiro seja mais híbrido, menos centrado na “alta cultura” institucional. o que se mede (ir ao museu, teatro) pode não capturar todas as formas de consumo cultural. o chamado “viés de visibilidade” implica que há um consumo significativo no Brasil, mas que não é igualmente mapeado ou valorizado quando comparado internacionalmente.

a prestígio cultural europeia também se mantém por capital simbólico acumulado. museus, universidades, casas de ópera e grifes funcionam como instituições de distinção — sinais de status e poder de classe. a nossa terra, por outro lado, ainda lutando contra desigualdades estruturais e educação precária, tem dificuldade de distribuir capital cultural de forma ampla. e os EUA, apesar do poder econômico, substituíram o capital simbólico tradicional pelo capital financeiro.

mas nem tudo que é importado é ruim, e se tem algo que podemos aprender sobre o continente do outro lado da poça é isso aqui;

o estado é quem deveria avaliar, financiar e distribuir o acesso à cultura — como fazem países europeus. lá, a cultura é tratada como direito social, não como luxo. existem ministérios com orçamento robusto, museus gratuitos, incentivo à produção local, descentralização territorial e integração da arte à educação.

no país do futebol, a política cultural é intermitente, subfinanciada e vulnerável aos governos. isso gera três distorções:

  1. concentração: cultura e arte se concentram nos grandes centros (sp, rio, bh), criando vazios culturais no interior.

  2. elitização: sem subsídio público, a cultura é financiada pelo mercado — e o mercado atende a quem pode pagar.

  3. descontinuidade: cada governo redefine prioridades, o que impede a continuidade e o planejamento de longo prazo.

portanto, a política é, sim, um fator primário: sem estrutura pública, a cultura vira privilegiada.

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e como fica a relação do pobre com a cultura nesse país?

a pobreza não causa independência diretamente, mas cria as condições para ela prosperar. em termos sociológicos (bourdieu de novo), quem nasce sem capital econômico recentemente adquire capital cultural — e isso reproduz a exclusão simbólica.

a escola pública, em geral, oferece ensino técnico de sobrevivência, não de frutificação estética. e a arte não é ensinada como linguagem, mas como “atividade extra”. ou seja: a ignorância cultural é uma consequência da estrutura social, não de incapacidade individual.

ela é cultivada por um sistema que não considera o cidadão um sujeito cultural, apenas consumidor (a la eua) ou eleitor🐴.

mesmo quando há alguma política cultural (como a meia entrada nos cinemas), elas falham se não houver educação estética desde cedo. a europa tem séculos de tradição em integrar arte, filosofia e história da arte na formação básica. no brasil, o ensino é utilitário e voltado ao vestibular, a arte é vista como “decoração” ou “tempo livre”. e assim criamos médicos e engenheiros ignorantes haha.

ou seja, a população não desenvolve vocabulário simbólico, não entende o papel da arte como linguagem social, e portanto não exige cultura. o que reforça a falta de investimento político. é um ciclo: não se consome o que não se aprendeu a valorizar.

tudo continua como é porque a ignorância é útil, a desigualdade é lucrativa e a cultura crítica é perigosa para quem vive da manutenção do caos. A diferença entre aqui e a Europa não é efeito colateral, como se pensa. é estratégico. lá, o poder precisa dos cidadãos. aqui, o poder ainda precisa de súditos.

a ignorância cultural no brasil não é genética nem evoluiu. é um projeto histórico. ela serve a uma estrutura: quanto menos consciência simbólica o povo tem, menos exige, menos questiona e mais consome o que é imposto. não é que o brasileiro não goste de arte; é que ele foi afastado dela sistematicamente.

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